O olho esquerdo
texto e foto: Paula da Silva


É vulgar ouvir pessoas, com uma larga vivência com cavalos, afirmar que o lado direito do animal não parece aperceber-se das acções do lado esquerdo. Os cientistas que estudam o comportamento equino chegam a afirmar que a secção esquerda do cérebro não comunica com a do lado direito. Se assim for não nos podemos admirar de por vezes termos a sensação de estarmos a montar dois cavalos diferentes simultaneamente. O olho esquerdo.

 


photo: P. da Silva

Um dos trajectos mais directos para a mente do cavalo é através dos seus olhos. Para podermos perceber o comportamento equino é fundamental compreendermos como funciona a sua visão, uma vez que as dificuldades que surgirem relacionadas com a sua disponibilidade, podem estar directamente relacionadas com a forma como vê.
A nossa visão é binocular e a do cavalo é monocular. Como todos sabemos, os olhos do ser humano fazem uma focagem simultânea, formando uma só imagem. Os olhos do cavalo focam independentemente um do outro. Cada olho abrange uma imagem diferente e, só com um esforço concentrado e focando mesmo em frente e a uma certa distância é que consegue focar ambos os olhos no mesmo ponto. Daí se depreende que sob condições normais o cavalo enfrenta habitualmente dois campos de visão distintos. É como se estivéssemos confrontados com dois televisores, a ver dois programas diferentes em simultâneo. Mesmo dispondo de uma inteligência humana superior, não nos é fácil, para não dizer que é impossível, seguir os dois programas ao mesmo tempo. A tendência é de dar mais atenção a um deles, até que no outro alguma coisa a faça desviar-se. Os cavalos vivem esta situação permanentemente.
Quando nascem dão igual importância a qualquer imagem que lhes chame a atenção. Mas, após um curto período de associação com o ser humano tornam-se definidamente esquerdos, mesmo a nível visual! Qual a razão?. A tradição, religiosamente seguida, de se tratar, aparelhar e montar do lado esquerdo provoca nos cavalos a tendência de darem mais atenção a tudo que se passa desse lado, incluindo a preponderância de focalização com o olho esquerdo. As reacções resultantes desta antiga tradição têm muito a ver com o seu comportamento.

Tudo começa quando se dão os primeiros passos na educação do poldro muito jovem, na altura em que se lhe coloca o primeiro cabeção, que é imediatamente colocado, ajustado e apertado do lado esquerdo; seguidamente apreende a andar à mão com o treinador do seu lado esquerdo. Tal como os cavalos, o ser humano firma-se rapidamente em hábitos, tendo a tendência de começar sempre a operação de limpeza pelo lado esquerdo dedicando, sem se aperceber, muito mais tempo a escovar o lado esquerdo do que o direito. Distribuem-se os alimentos do lado esquerdo, ajustam-se e apertam-se os arreios do lado esquerdo, monta-se do lado esquerdo.
Com toda esta actividade a passar-se do lado esquerdo, o cavalo acomoda-se a observar o mundo através do seu olho esquerdo - a dar sempre prioridade ao seu olho esquerdo.
Quando são passados à guia pela primeira vez é habitual trabalharem bem para a esquerda por lhes ser muito mais cómodo visualizar a pessoa que está no centro do círculo com o olho esquerdo.
Se amarrarmos um cavalo à argola numa parede é vulgar ele colocar-se paralelo a essa parede, com o olho esquerdo para fora, de maneira a poder visualizar o que o rodeia.
6 olhos melhor que 2.

6 olhos melhor que 2
photo: P. da Silva

 

Quando em passeio passamos por um objecto desconhecido, imóvel, do nosso lado direito, é provável que o cavalo nem dê conta. No entanto, se dermos a volta e passarmos pelo mesmo objecto mas desta vez a ser visionado pelo olho esquerdo, o mais natural é que o cavalo faça um reparo. O objecto não se alterou nem se moveu, o cavalo é que só reparou nele quando o visualizou com o olho esquerdo.
Quando alguma coisa prende a atenção de um cavalo e ele repara, a sua reacção pode ser determinada pelo lado em que o objecto que o assusta se encontra. Se o susto vier do lado direito é normal que ele gire de forma a que o objecto que o assusta fique do seu lado esquerdo para que ele possa observá-lo mais comodamente. Se pelo contrário, o motivo do susto vier do lado esquerdo, é mais provável que dê um salto para o lado para se afastar, em vez de girar.
É muito vulgar o treinador aperceber-se que um cavalo tem preferência em trabalhar para a esquerda. Ao fazê-lo, o cavalo abstrai-se do que se passa do seu lado direito, concentrando-se sobre o que se passa no interior do espaço em que trabalha. Esta situação também se verifica em competição - o cavalo só fixa as imagens captadas pelo olho direito quando, por qualquer motivo, surgir grande movimento ou ruído no exterior da pista. Quando isso acontece tenta girar de forma a que o seu olho esquerdo fique voltado para o exterior, onde se verifica o movimento ou ruído: se por qualquer motivo não puder girar, pára, recua e tenta afastar-se do que o assusta.
Alguns cavaleiros ficam muito admirados quando na volta de um passeio ou na parte final de uma prova aparecem os reparos!
A parte triste desta história é que os cavaleiros assumem que o cavalo está a cometer uma desobediência uma vez que já passou no mesmo lugar sem reparar. O cavalo é então castigado por se assustar, o que lhe vem confirmar que tinha uma boa razão para se assustar.
Um treinador competente deve ter o cuidado de educar o jovem cavalo de forma a que ele possa ser igual para ambos os lados. Deve andar à mão correctamente de qualquer dos lados, a alimentação deve poder distribuir-se-lhe de ambos os lados e ser montado sem qualquer reparo de ambos os lados.
Ao tentar reeducar um cavalo 'esquerdo' nunca nos devemos esquecer que isso requer tanta ou mais paciência, persistência e calma como persuadir uma pessoa 'esquerda' a escrever com a mão direita.

Paula da Silva


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