Planeta Cavalo


O CONTO DE HOLD PAI
HOMENAGEM A UM AMIGO

Já fazia sete anos que eu conhecia Ordji-pai. Esta corruptela de nome lhe havia sido dada por um dos tratadores de Santo Amaro; seu nome de registro era Hold Pai. Assim mesmo, e não “Hold Pie”, como pensáramos de saída, querendo lhe atribuir um nome em inglês cuja melhor tradução seria “Segure a Torta”. Por mais estranho que fosse seu nome, era muito bem nascido: em 1976, ano em que ele nascera, o Haras Malurica estava entre os expoentes da criação brasileira do puro-sangue inglês.

De qualquer maneira, nos últimos tempos ele havia se tornado apenas o Velho Pai. Era apropriado, pois finalmente envelhecera. No inverno anterior, ainda saíra a passear pelas trilhas de Embú-Guaçú montado pela sua dona. Tordilho branco, já não tão seguro nos galopes, mesmo assim ninguém queria acreditar que ele já estivesse com vinte e dois anos: suas pernas eram retas, de tendões bem delineados, e a cabeça altiva voltava-se, atenta, para tudo de diferente que lhes cruzasse o caminho, especialmente as éguas. Mesmo neste inverno seguinte, quando já não era mais possível montá-lo, e ele às vezes perdia o apetite nas geladas manhãs de julho, bastava que percebesse um cavalo passando na rua embaixo para que arregalasse os olhos, líquidos e negros, e emitisse seu relincho desafiador. O mesmo carisma que lhe conquistara amigos pela vida afora agora mantinha acesa a chama do velho garanhão.

Durante os meses de 1993 em que eu trabalhara como gerente de cocheiras no Clube Hípico de Santo Amaro, eu escolhera alguns favoritos pessoais entre os quase quatrocentos cavalos que o clube então abrigava. Havia Mumú, o pequeno pampa que ainda não despontara para sua carreira internacional, mas já tinha um tratador exclusivo; ou Mephisto, um imenso trakehner de orelhas muito longas e temperamento tímido; e ainda Giordano Bruno, que anos atrás havia pertencido a mim. Mas se alguém tivesse me pedido que lhe mostrasse o que eu considerava um modelo de beleza de cavalo de esporte, eu lhe teria mostrado Ordji-pai, que tinha as proporções das quase extintas linhagens fundistas do puro-sangue inglês, pescoço longo e garupa larga emoldurando um corpo profundo e bem musculado. Apesar de ser um garanhão, Pai tinha um temperamento calmo e trabalhava bem-comportado mesmo nos dias de pistas mais lotadas. E como trabalhava! Sua proprietária de então, Margie, levava o cavalo de 17 anos num programa diário de treinamento que incluía exteriores, salto e adestramento, mantendo a musculatura dele tão desenvolvida quanto devia ter sido nos seus tempos de cavalo de corrida. Já então, Pai tinha um longo retrospecto esportivo; após alguns anos nas pistas do Jockey Clube, tornara-se cavalo de salto, chegando a disputar provas de 1,30, até ser adquirido por Margie. Norte-americana vivendo no Brasil há alguns anos, ela não participava de competições, mas ainda assim aplicava em Pai todos os conhecimentos que ela adquirira como amazona de salto, ainda nos Estados Unidos.

A minha amizade com Margie perdurou depois que deixei o Clube e passei a trabalhar num Centro Hípico nos arredores da cidade. Algum tempo depois, o término do contrato de trabalho de Bill, marido de Margie, obrigou a família a retornar aos Estados Unidos, e Pai foi levado a um haras em Sorocaba que aceitava cavalos pensionistas em regime de aposentadoria. Consideramos que Pai mais do que merecia o descanso na companhia de outros cavalos, finalmente ficando solto nos grandes piquetes do haras, após mais de quinze anos de confinamento constante nas cocheiras das hípicas. Também ficamos todos surpresos ao saber que o velho gentleman, que no Clube mal parecia se lembrar do “detalhe” de não ter sido castrado, uma vez no Haras irrompera em verdadeiros ataques de adolescente impetuoso sempre que perto de éguas, como que exclamando que sua carreira de atleta já havia durado muito, e já era mais do que hora de passar à reprodução. Infelizmente, no Haras de árabes não havia companhia feminina adequada para aquele subitamente fogoso puro-sangue inglês, mas não havia dúvidas de que a mudança de ares dera novo alento a Ordji-pai. Uma misteriosa anemia, que resistira a tratamentos e que chegara a ser diagnosticada como doença auto-imune incurável (a eutanásia chegara a ser cogitada) desapareceu como por encanto depois de algumas semanas no haras , e acabou posteriormente sendo rediagnosticada como “depressão de origem emocional”.

Passou-se quase um ano, quando Margie nos contatou, dos Estados Unidos - ela já não tinha condições de continuar a pagar a pensão mensal do Ordji-pai, e queria saber de não tínhamos como utilizá-lo na escola de equitação do nosso Centro Hípico. Encantada com a idéia de receber de presente aquele que eu já considerara o cavalo mais bonito de Santo Amaro, convenci Luis, o proprietário do centro, a viajarmos até o haras. Pai não nos decepcionou, musculoso como sempre, e trotando pelo piquete aparentando talvez metade dos seus quase vinte anos. Como cavalos altos, fortes e bem-domados estivessem sempre em demanda para os nossos principiantes adultos, não foi difícil nos decidirmos, e assim Pai reiniciou suas atividades de cavalo de montaria.

Da temporada que Pai passou no Centro Hípico, lembro-me especialmente de um fim de tarde em semana de lua cheia, em que três de nós resolvemos fazer uma cavalgada noturna. Luis montou seu fiel Cigano, eu optei pelo Ordji-pai, e nosso amigo Ricardo pediu para montar Princesa, uma das éguas de nossa escola de equitação. Foi uma animada cavalgada de hora e meia, e quando estávamos no caminho de volta, crescia a tentação de esticar a morna noite de verão no Ranchão, parada obrigatória dos cavaleiros da região. Não havíamos trazido cabrestos – mas a sede falou mais alto. Cigano e Princesa, acostumados a crianças e principiantes, sabiam ficar presos pelas rédeas. Quanto a Pai, achei um barbante com o qual amarrei sua rédea ao arame da cerca, na esperança de que o improviso o contivesse por meia hora.

Vã esperança – foi naquela noite que descobrimos que Pai aceitava ficar amarrado apenas em lugares fechados. Dentro da cocheira, ou mesmo encarando uma parede, um cabresto de barbantinho bastaria para contê-lo, mas num palanque, olhando a paisagem (e especialmente outros cavalos), ele arrebentava cordas e cabos em busca da liberdade. Foi o tempo de nos acomodarmos à mesa e sairmos correndo de novo, alertados por relinchos, o estalo de couro e arame partindo, mais relinchos e logo cascos ferrados galopando no asfalto. Lá fora, apenas Cigano restava, enquanto Princesa e Pai haviam desaparecido na noite cada vez mais escura, à medida que a lua era encoberta por nuvens; apenas um fraco eco de galope e relinchos nos diziam a direção que eles haviam tomado, oposta ao rumo de casa.

Pensando no que a dona de Princesa teria a dizer sobre uma prenhez não-planejada de sua égua, lancei-me sobre Cigano e fui no encalço dos fugitivos, enquanto Luis e Ricardo seguiam a pé pela beira da estrada. Poucos momentos depois, o galope dos outros dois cavalos ficava cada vez mais próximo – Princesa havia decidido optar pela segurança do lar e fizera meia-volta, com o ardoroso Pai em perseguição. Embora tentasse, não consegui barrar o caminho da égua assustada, e ela passou por Cigano e mim, novamente indo para longe de casa, mas agora em sentido oposto. No encalço da égua, animei meu cavalo:

- Corre, Ciganinho, senão o Pai vai fazer sanduíche da gente!

Entrando numa viela sem saída, Princesa acabou encurralada num canto, e Cigano e eu fizemos o possível para impedir que Pai se aproximasse dela. Chegando esbaforido, Luis conseguiu se enfiar entre os cavalos sem ser escoiceado ou pisado, e finalmente capturou o garanhão tordilho. Isto nos deixou com o problema da volta para casa, pois cabeçada e rédeas de Pai estavam em frangalhos. Acabamos por improvisar um cabo de cabresto com meu cinto, e, cavalheirescamente, Luis insistiu para que eu montasse Cigano, enquanto ele percorreu os cinco quilômetros trotando a pé, alternadamente rebocando e sendo arrastado por Hold Pai. Fizemos outros passeios com o “Jovem Pai” depois daquela noite, mas sempre levando cabresto e escolhendo um bom lugar para deixar o cavalo amarrado!

Por mais que gostássemos de Pai, logo tornou-se claro que ele não serviria para nossa escola de equitação. Seu comportamento de garanhão, muito mais intenso do que nos tempos em que eu o conhecera no Clube, impossibilitava seu uso por principiantes, principalmente em aulas de grupo. Por outro lado, uma certa rigidez nos movimentos, decorrente da idade, e que também desaconselhava seu uso no salto, fazia com que ele deixasse de ser popular entre os alunos mais avançados. O garanhão puro-sangue tornara-se uma grande responsabilidade, pois Margie havia deixado claro que, se fosse impossível dar ao cavalo um lar em que ele recebesse os cuidados adequados, ela preferia que ele fosse sacrificado. É claro que jamais teríamos mandado o cavalo para pessoas que não tivessem condições de tratá-lo bem, mas por outro lado não podíamos arcar com o ônus de manter um cavalo que não pagasse as próprias despesas. E menos ainda queríamos abreviar sua vida, com ele no auge da alegria e da forma física.

Entretanto, a sorte mais uma vez sorriu ao Ordji-pai, através da nossa amiga Susi. Ela tinha espaço para dois cavalos no quintal de sua casa, em Embú-Guaçú, mas naquela época possuía apenas Cigana (sem parentesco com o nosso Cigano), uma égua argentina de doze anos. Tal como antes acontecera comigo, Susi se apaixonou pela beleza do tordilho, e pelos seus imensos olhos negros, e prontamente aceitou quando lhe oferecemos o cavalo.

Os próximos quatro anos foram, acredito, os mais felizes da vida de Pai, ao menos do ponto de vista eqüino. Ele e Cigana tinham cocheiras contíguas, e após um período inicial de habituação mútua, passaram a ser soltos no mesmo piquete, onde conviviam pacificamente na maior parte do tempo, descontadas as periódicas investidas amorosas do garanhão. Apesar de suas árdegas tentativas, ficou evidente que Pai não tinha experiência como reprodutor, e apesar de Cigana, que já havia tido três potros, dar sua paciente parcela de contribuição, ela permaneceu vazia durante dois anos. Susi já havia aceito a idéia de que a idade tornara o garanhão infértil, quando no início do ano de 1999, confirmei num toque meio incrédulo a prenhez de Cigana. Nosso bordão das próximas semanas foi – o Pai vai ser pai! Durante grande parte destes anos, Pai também continuou a ser montado, ao menos em passeios de fim-de-semana, chamando a atenção em todos os lugares por onde passava. Ainda que tivesse perdido a musculatura dos tempos de trabalho intenso, sua beleza alta e longilínea era raridade, numa terra de cavalos marchadores baixinhos, gordinhos e cabeludos.

A amiga mais especial de Pai surgiu como que do nada, sem revelar a sua origem, e no entanto foi como se eles se conhecessem desde sempre. Era uma cachorrinha vira-lata, pouco maior que um fox paulistinha, mas de uma cor bege rajada de preto que a fazia parecer um canídeo primitivo das savanas africanas. Certo dia, ela amanheceu dentro da cocheira do cavalo, arredia demais para se deixar tocar por qualquer pessoa, mas totalmente à vontade entre as pernas de Pai, e por ele sendo cheirada. A porta da baia tinha perto de um metro e trinta, mas até alturas maiores não eram obstáculo para a cachorra, que saltava e corria com a graça e leveza de um animal selvagem. Seus pulos enormes, sua timidez e sua cor fizeram com que Susi a batizasse de Bambi. O tordilho sempre fora seletivo quanto às pessoas de que gostava, e não hesitava em se defender com coices e mordidas das investidas de cães atrevidos, fosse na rua ou no canil de Susi. Mas à sua maneira discreta e reservada ele adorava a cachorrinha, compartilhando a baia com ela e permitindo que ela lhe pulasse até a altura do peito e lhe lambesse o focinho sempre que saíam a passear.

Bella Luna, a filha de Cigana e Ordji-pai, nasceu em dezembro de 1999, mostrando-se tordilha desde o primeiro dia e branca quase por completo já na idade de desmame. Tinha um tanto da cabeça hispânica da mãe, mas o belo pescoço lançado do pai, e o corpo musculoso e profundo de ambos. Luna tinha pouco mais que uma semana quando fui à casa de Susi num fim de tarde, antes que ela tivesse voltado do trabalho. Fui visitar os cavalos no quintal – com a potra tão pequena, Susi estava soltando e encocheirando alternadamente a égua e o garanhão. Entretanto, encontrei os dois unidos, e algumas circunstâncias – tábuas partidas, dentadas dadas e recebidas nos dois cavalos, a grama esburacada – me revelaram que, havia poucos minutos, eles tinham estado ainda mais unidos. Quando Susi chegou, anunciei alegremente:

- Desta vez, o velho não perdeu tempo...

Enquanto escrevo (julho 2.000), faltam poucos meses para o nascimento do segundo filho do velho Pai.

Nesta época, Susi se tornara dona de três cavalos, mas não podia montar em nenhum. Apesar de ter apenas dezesseis anos, Cigana fora aposentada do esporte por sofrer de doença do navicular. Pai ainda era usado em passeios esporádicos, mas sofria de certa incoordenação dos posteriores que fazia com que montá-lo fosse cada vez menos seguro, especialmente em descidas. Susi também começou a pensar que ele pudesse ter algum problema de visão, pois sinais nas paredes da cocheira e na testa do cavalo mostravam que ele andava batendo a cabeça na parede. Não obstante, Pai continuava cheio de gás, correndo no piquete e alardeando sua presença para toda a vizinhança. Ele desenvolvera uma alergia alimentar que se manifestava em cólicas leves e repetidas. A conselho do Dr. Marco Antônio, um veterinário nosso amigo, Susi substituiu a ração concentrada do velho cavalo por aveia achatada. Com isso, não apenas as cólicas desapareceram, como também uma alergia cutânea, a qual Pai já tinha nos tempos de Santo Amaro, deixou de existir.

Querendo dar à potrinha Luna o melhor ambiente possível para que ela pudesse se desenvolver bem, Susi mandou Cigana e a filha à fazenda no litoral de um amigo. Inicialmente, Pai ficou um tanto abatido com a nova solidão, mas depois de algumas semanas chegou Qui Bella, uma égua anglo-árabe, também tordilha, que Susi adquirira para ser seu novo cavalo de montaria, enquanto Luna não ficasse adulta.

O inverno chegara, e era claro que Pai sentia nos ossos o peso da idade. Havia dias em que comia apenas feno, que não conseguia mastigar bem. Minha tentativa de lhe grosar as pontas dos dentes terminou com a descoberta de que seus molares estavam gastos quase até a gengiva, e era por isso que não conseguia triturar alimentos fibrosos. Pior que isso é que o problema de incoordenação motora dos posteriores fora aumentando aos poucos; às vezes o cavalo caía e precisava de ajuda para se pôr de pé, e depois disso ficava dias sem deitar para descansar, temeroso de não conseguir levantar. Tanto Susi como eu sabíamos que tínhamos uma responsabilidade com o velho garanhão, e também com Margie, que anos atrás o havia confiado a nós. Mas o nosso acordo explícito era que, enquanto Pai tivesse apetite por comida e éguas, e conseguisse andar razoavelmente, não tomaríamos atitudes precipitadas.

Num domingo em meados de julho, Pai caiu dentro de uma valeta de drenagem que cortava os fundos do piquete, e nela ficou entalado por perto de cinco horas. Susi estava viajando, visitando Cigana e Luna no litoral, e foi Oscar, o ferreiro vizinho de frente e amigo de longa data, que coordenou a operação resgate. Pai não estava gravemente ferido, mas muito dolorido, e ficou alguns dias à custa de soro e analgésicos, até voltar a se alimentar melhor. Mas não foi mais o mesmo; alguns dias depois, caiu quatro ou cinco vezes, à toa – parado em pé num momento, para despencar ao chão no outro, sem motivo ou aviso, e em todas as vezes precisou da ajuda de Susi para se levantar. E não tocava mais na ração, limitando-se a mordiscar o capim cortado.

No dia seguinte, Susi me telefonou na Universidade do Cavalo, onde eu estava participando de um curso. Ela me relatou como os últimos dias haviam sido, e pediu minha opinião: era ou não chegada a hora? Resolvemos que eu traria todos os medicamentos, mas que tomaríamos uma decisão apenas depois que eu examinasse o cavalo. Fui contar a história para o Dr. Mequinho, veterinário da Universidade, pedindo-lhe uma receita para fazer a eutanásia, se necessária, tão indolor quanto possível, não importando o custo dos produtos. Saí de Sorocaba ao fim da tarde, armada com um arsenal de remédios suficiente para anestesiar meia dúzia de cavalos.

Em Embú-Guaçú, Pai estava cabisbaixo num canto da cocheira, permeada de um forte cheiro de amônia. Ele estava bastante desidratado: obviamente, além de não se alimentar, também não estava ingerindo água o suficiente. Perdera bastante peso e cruzava as pernas ao andar, e dava a impressão de correr o risco de cair a cada passo. Com tudo isso, quando cuidadosamente o fizemos sair da cocheira, ele ainda ergueu o pescoço em riste, arregalou os olhos negros, e começou a cortejar Ki Bella, na baia vizinha. Opinei a Susi:

- Ainda podemos tentar alguma coisa, mas aí vai ser medicação pesada - soroterapia, analgésicos, corticóides... e com tudo isso, torcendo para ele voltar a ter apetite. Com esse problema nas pernas, quantos meses mais - três, quatro?

Por sua vez, Susi ponderou sobre o risco de ter o cavalo em casa naquele estado, com ela trabalhando fora a maior parte do dia. E se ele voltasse a cair num buraco, sem ninguém para atendê-lo? E se machucasse uma das crianças, ou a velha empregada que cuidava do canil e alimentava os cavalos? E se depois de toda a medicação ele não voltasse a comer?

Enquanto falávamos, Ordji-pai mordiscava a grama rala do jardim, abençoadamente sem conhecer o tema de nossas deliberações. Finalmente, Susi resumiu nossos pensamentos:

- Eu o conheço bem, e ele realmente não está mais sentindo a mesma alegria de viver. Ele até disfarça, mas acho que está sentindo muita dor. Nestes dias, já emagreceu muito - e agora, encher ele de agulhas, e remédios, para que ele agüente mais algumas semanas? Prefiro me lembrar dele como é agora, ainda bonito, do que definhando aos poucos.

A minha opinião era a mesma - o que não quer dizer que nossa decisão fosse fácil, ou leve. Lentamente, descemos a rua: Susi e eu conduzindo entre nós o velho cavalo, que caminhava cambaleante, mas ainda assim alerta, olhos no horizonte. Éramos seguidos pela cachorrinha Bambi, a mais alegre do grupo, talvez crente que estivéssemos de partida para alguma cavalgada noturna.

O vizinho Oscar nos conduziu até seu jardim dos fundos. Ali, o cavalo ficaria oculto dos olhares das crianças e dos vizinhos até que a prefeitura viesse removê-lo, na manhã seguinte. (Embú-Guaçú é uma área de mananciais, onde há restrições ao sepultamento de animais de grande porte). Organizei em fila os frascos de medicamentos, e comecei pelos tranqüilizantes. Afaguei o cavalo como sempre fazia, garantindo-lhe que era apenas mais uma injeção, como tantas que ele tomara pela vida afora. Normalmente, a tranqüilização, ou pré-anestesia, não é o bastante para fazer um cavalo deitar, mas passaram-se uns dois minutos apenas para que Hold Pai, estonteado, caísse suavemente ao solo, com as mãos experientes de Oscar ajudando-o a ficar numa posição confortável. Em seguida, apliquei a seringa com o anestésico cirúrgico, e em menos de um minuto o velho Pai respirava profunda e lentamente, com a ausência do reflexo ocular mostrando que ele havia perdido a consciência. Foi aí que nos demos conta que ele estava, na verdade, muito mais fraco do que aparentara; sua vitalidade, o interesse que conservara pelo mundo em seu redor até os últimos instantes de consciência, haviam sido as labaredas finais de sua chama vital, brasa que agora ia se apagando aos poucos.

Havia duas seringas da droga final a ser aplicada, que paralisaria os músculos respiratórios. Concluída a primeira, fui em busca da segunda - e retornando em menos de um minuto, se tanto, descobri que o velho garanhão havia partido. Não se debatera, não gemera nem tivera um espasmo - permanecia deitado na mesma posição em que Oscar o acomodara. Tive um pensamento que era, assim, mais uma prece:

Se Deus me conceder que The Flame, meu próprio cavalo a quem tanto amo, fique comigo até o fim, que ele possa morrer assim. Calmo, sem medo e sem dor, e cercado de amigos.

Cobrimos o corpo de Hold Pai com uma lona, e encerramos a noite dividindo uma garrafa de vinho em homenagem ao velho Pai, relembrando histórias de sua vida longa e feliz. Sentia-me melancólica, mas tinha também a satisfação de um trabalho bem feito, que nos permitiria a todos dormir de consciência tranqüila. Como já fosse tarde, pernoitei na casa de Susi. Foi apenas durante o café da manhã que tive dores na consciência, quando nos demos conta:

- Onde está a Bambi?

Susi foi à casa de Oscar, para voltar carregando no colo a cachorrinha, que passara a noite enrodilhada junto ao velho amigo, seja velando-o, seja esperando que ele finalmente levantasse, quem há de saber. Até o rijo Oscar ficara com a voz trêmula:

- Isso é que é amiga fiel...

Foi necessário trancar a cachorrinha até que o caminhão viesse; Susi a deixou no quartinho junto com a capa do tordilho, esperando que ela encontrasse consolo no cheiro familiar. Fui me despedir de Bambi com um afago:

- Deixe estar, a filha dele volta para cá no fim do ano, e você terá uma nova amiga!

Beijei as crianças, dei um abraço apertado em Susi, e fomos tocar a vida.

Claudia Leschonski
1° de agosto de 2.000


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