20 de Outubro 2000

Quando o Fado
Encontra a Cançäo napolitana

O Instituto Camões e o Instituto Italiano da Cultura trouxeram até ao Luxemburgo uma conferência e um espectáculo intitulados "A Voz de Nápoles e a Voz de Lisboa",

atestando um diálogo entre o fado português e a canção napolitana. Os intérpretes da efeméride foram Consiglia Licciardi e Nuno da Câmara Pereira (verso citado no título deste

artigo) que actuaram no Luxemburgo a 14 de Outubro, posteriormente à conferência realizada no Instituto Camões por Paolo Scarnecchia.

Continua.......

Duas vozes cantam duas cidades
O"fado" de Nápoles e a canção de Lisboa, em Esch/Alzette

ora na voz potentissima de Cristalina de Consiglia. Duas vozes, mas não ao desafio. Antes, numa mútua sedução, como uma serenata consentida.
Muito aplaudido pelo público foram sobretudo os desempenhos dos dois artistas, quando estes se exprimiam na Língua do outro: Consiglia não hesitou mesmo em usar o xaile preto, tipicamente português, para acompanhar Nuno da Câmara Pereira em alguns fados. Um dos momentos altos do espectáculo foi um dueto da célebre canção italiana "Ó Sole Mio", cantado em Italiano e Português. Também muito apreciado, sobretudo pelo público português, foram alguns fados, que Nuno da Câmara Pereira não pode deixar de cantar, mesmo se não faziam parte do programa, prolongando assim, por mais meia-hora, o espectáculo.
Outro momento que conquistou o público, composto essencialmente por portugueses e italianos, embora houvesse também muitos luxemburgueses, foi quando os sete guitarristas em palco (três italianos e 4 portugueses) interpretaram, num majestoso tema instrumental, o "Interlúdio luso-partenopeu", sob forma de diálogo entre a

Por iniciativa do Instituto Camões e do Istituto Italiano de Cultura, realizou-se, no passado sábado, no Teatro Municipal de Esch/Alzette, um Serão dedicado ao Fado e à Canção napolitana.
Os "actores principais" deste diálogo entre o Fado e a Canção de Nápoles, foram o fadista Nuno da Câmara Pereira e a cantora Consiglia Licciardi, acompanhados pelos músicos Fernando Silva (guitarra portuguesa), Pedro Amendoeira (guitarra portuguesa), Carlos Velez (viola), Fernando Calado (viola), Giuseppe Licciardi (guitarra), Gianni Dell'Aversana (guitarra) e Michele Di Martino (mandolina).
Duas vozes,
sete guitarras
O público deixou-se encantar e rendeu-se, por completo, às vozes dos dois artistas, que interpretaram, cada um, canções das suas cidades respectivas sobre o tempo, a noite, o sentimento, o jardim, o bairro, o passado, o abandono, a tradição, a distância e o amor. Nuno da Câmara Pereira de um lado do palco, Consiglia Licciardi, do outro. Cada emoção, cada lugar cantado à maneira de Lisboa ou de Napóles, ora na voz bem nossa conhecida de Nuno,

guitarra portuguesa e a mandolina.
Depois do espectáculo, o CONTACTO  falou com o fadista português que se declarou muito contente por estar de novo no Luxemburgo, e que aprecia muito a maneira como é recebido pela comunidade portuguesa aqui radicada.
Um projecto com 4 anos
Nuno da Câmara Pereira disse-nos como tinha nascido este projecto e a digressão que têm feito pela Europa e Bacia mediterrância.
"Há uns 4 anos, encontrei a Consiglia num Festival de Música Mediterrânica, na ilha de Malta. Eu estava a representar Portugal com o Fado e a Consiglia a Itália, com a Canção napolitana. Sentimos a perfeita sintonia entre as duas canções e daí surgiu a ideia de cantar em dueto. Ambas as canções são bastante homogéneas, nostálgicas, mediterrânicas - a cultura portuguesa, tem, aliás, muito mais de mediterrânico do que possamos imaginar - e há muitos outros pontos comuns entre as duas cidades, Nápoles e Lisboa, e entre os dois povos."
"Já levámos este espectáculo a Malta (Teatro de la Valleta), à Sícilia, a Florença, a

Nápoles, e a Tunes (Tunísia)", disse-nos.
Nuno da Câmara Pereira confiou-nos que foi um pouco difícil aprender a cantar em napolitano (diferente da língua italiana).
Os dois artistas estão também a pensar imortalizar este espectáculo único num álbum. Para já, há a vontade de multiplicarem os concertos em Portugal e por toda a Europa. O próximo local, na sua agenda, é o Funchal, onde estarão já esta noite (uma semana depois do Luxemburgo), num espectáculo transmitido em directo pela RTP Madeira. Depois, no fim do mês de Outubro, estarão na Argentina, no primeiro concerto do que será a sua digressão na América Latina, no próximo ano.
"Uma experiência extraordinária"
Consiglia Licciardi considera este projecto uma "experiência extraordinária", que o Fado de Lisboa e a Canção napolitana "são duas canções que falam de cidades à beira-mar, que falam dos mesmos sentimentos, da nos- talgia, do amor". Disse-nos que tinha sido muito difícil aprender a cantar em Português e confiou-nos que estava muito ansiosa e desejosa de

actuar na Madeira, já que este será o seu primeiro espectáculo em Portugal. Confessou-nos que vai ser um momento forte para si, "como foi, há dois anos, para o Nuno, a primeira vez que ele cantou em Nápoles". Consiglia espera também que o espectáculo seja registado num disco,logo que uma Editora manifeste interresse.
Nuno da Câmara Pereira tem novo disco, sem fado
Quanto a projectos a solo, Nuno da Câmara Pereira revelou, em primeira mão ao CONTACTO, que estava prestes a sair, nos próximos dias, um novo álbum seu, mas que não contemplava o Fado.
"Este álbum chama-se 'A última noite', é um disco com música de sedução, música de dança em Castelhano e Português, música romântica, "slows", um 'fado dançável', onde contei com a participação de Rui Veloso, dos Tetvocal, do Jorge Fernando, da cubana Lucrécia, da Rosana (Ilhas Canárias), da espanhola Yolanda e até do guitarrista dos Pink Floyd, Snowy White", revelou-nos o fadista.
"Já que  há tantos cantores da canção ligeira que cantam Fado, porque não fazer o contrário, um fadista cantar música ligeira?", acrescentou.

JLC

"O fado não foi criado so para cantar a desgraça"

O Instituto Camões e o Instituto Italiano da Cultura trouxeram até ao Luxemburgo uma conferência e um espectáculo intitulados "A Voz de Nápoles e a Voz de Lisboa", atestando um diálogo entre o fado português e a canção napolitana. Os intérpretes da efeméride foram Consiglia Licciardi e Nuno da Câmara Pereira (verso citado no título deste artigo) que actuaram no Luxemburgo a 14 de Outubro, posteriormente à conferência realizada no Instituto Camões por Paolo Scarnecchia.
Paolo Scarnecchia nasceu em Roma em 1955 e doutorou-se em Música pela Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha. Foi professor em várias escolas, instituições e países (no Conservatório, na Academia Nacional de Dança de Roma, no Rio de Janeiro, etc.). De entre as suas múltiplas ocupações e cargos, como o de director artístico de vários festivais de música internacionais, salientamos o de

professor responsável pelo sector musical da Unimed (Unione delle Università del Mediterraneo). É também colaborador da RAI, realizando vários programas para a Rádio dedicados à música culta e tradicional de diversas épocas e nações, com uma incidência particular no espaço mediterrânico e nos países do mundo islâmico. Este estudioso tem publicado inúmeros artigos e participado em traduções, ciclos de conferências e seminários, concertos e manifestações musicais, sendo ainda colaborador de vários jornais e revistas especializadas. De entre as suas muitas publicações destacamos apenas as relacionadas com a música portuguesa: Musica popolare brasiliana (Gamma Libri 1983), La musica in Portogallo (CIDIM 1986), Heitor Villa-Lobos (La Musica 1987), Enciclopedia del Mediterraneo. Musica popolare e musica colta, Jaca Book.
O Prof. Scarnecchia começou por referir que Lisboa e Nápoles são

"cidades que cantam" ("villes chanteuses"), sendo ambas palco de uma idêntica canção urbana. Neste tipo de canção evocam-se lugares específicos das respectivas cidades, fala-se do sentimento da perda, da saudade e da nostalgia. A canção napolitana e o fado são exemplos de "poesia cantada", transportando consigo um urbanismo não só real como imaginário e uma nostalgia do passado que parte de determinados locais importantes para a sua própria história (o Bairro Alto, Alfama, a baía de Nápoles). Este tipo de canções são como "postais ilustrados, como vistas panorâmicas", atestando uma identificação cidade/canção, uma simbiose, na qual a canção evoca a cidade e a cultura urbana, transformando-se na sua representante.
Enquanto a modinha prepara o terreno para o fado, a "vilanela"/"vilanesca" (de "vilão"; tipo de canção napolitana já existente na Renascença) prepara-o

para a canção napolitana. O fado castiço transforma-se numa canção de autor, como é o caso de Amália Rodrigues e de outras pessoas que deram uma nova dimensão ao fado. O 'gemido' da guitarra portuguesa representa o diálogo entre o guitarrista e o cantor fazendo como que pequenos comentários, demonstrando a existência de "uma pronúncia instrumental e de uma pronúncia poética".
O fado e a canção napolitana têm em comum o sentimento da perda e da nostalgia, algo que vem do mundo musical "cultivado" (os poetas, os artistas) e que vem da ópera italiana (através desta última e da modinha no caso português). Quer numa, quer noutra, a "pronúncia da canção é a garantia da sua autenticidade. Os portugueses falam num 'sexto sentido', ou se tem, ou não se tem". Uma pessoa é como que predestinada para cantar o fado, é o seu destino, o seu "Fatum", como o indica o próprio nome deste tipo de canções. "O

Fado não tolera as interpretações socio-políticas". Ao ouvir a canção napolitana/o fado tem-se a impressão de que qualquer coisa está a ser criada no momento, há um "algo de imediato", são canções "muito inspiradas, nascidas num determinado momento da inspiração". Para exemplificar a existência de uma espécie de predestinação falou-se em Nuno da Câmara Pereira, pois ele vem de uma família de cantores.
A canção napolitana foi, em determinado momento, a canção italiana por excelência, acontecendo o mesmo com o fado. As semelhanças entre ambas são, segundo este especialista, maiores do que as diferenças. Algo que as separa é o facto de haver na canção napolitana uma dimensão teatral pela baía de Nápoles, "uma dimensão diurna por oposição ao fado no qual a dimensão é essencialmente nocturna". Mas ambas são uma forma de estar no mundo. Lisboa e Nápoles são "cidades que são teatros da voz".

Home Page | Presentazione | Rassegna Stampa | Album Photo | Libretto di sala | Spettacoli